terça-feira, 27 de dezembro de 2005

O CARIOCA E O MAR, NEM SEMPRE UM CASO DE AMOR

A história da evolução dos costumes mostra que ir à praia já foi um programa que podia terminar na delegacia

O banho de mar em 1917 era terapia aconselhada por médicos e restrita, por decreto, a alguns horários. Ruídos e vozerios também eram proibidos. Trajes de banho, só com “a necessária decência”, ou seja, o corpo coberto. Os trajes ficaram menos sufocantes nos anos 30, mas a polícia levava para o xadrez os banhistas mais saidinhos. Era a “campanha pró-pudor”. A vocação libertária do carioca renasceu nas ousadias da década de 50 que, mesmo sob a chuva de areia de conservadores, transgrediam com o vistoso “duas peças”. O traje avançou para o biquíni e, nos 80, elas tiraram a parte de cima. O topless não vingou, mas o limite não era mais o decreto ou o código de conduta, e sim a moda.

Passado um século, os cariocas afogaram várias leis, portarias e regras de comportamento para escolher, sem repressão, a conduta adequada ao cenário mágico formado por areia, mar e corpos expostos ao sol.


Banhista fora da lei podia passar cinco dias preso

A primeira vez das praias na lei partiu de um decreto do prefeito Amaro Cavalcanti, em 1917. A medida, que regulamentava o uso das praias do Leme e de Copacabana, instituiu: “O banho de mar só será permitido de 1º de abril a 30 de novembro, das 6h às 9h e das 16h às 18h; de 1º de dezembro a 31 de março das 5h às 8h e das 17h às 19h”. Em outras palavras: durante o dia, a praia era proibida. Quem descumprisse as normas, pagava 20 mil réis ou passava cinco dias na prisão.

Claudia Gaspar, autora do livro “Orla carioca: história e cultura”, diz que a primeira legislação das praias teve provável origem francesa.

— As regras devem ter saído de manuais daquele país, tanto que os postos de salvamento eram chamados de postos de sauvatage. Apesar das restrições, era um avanço em relação ao período anterior, quando algumas pessoas alugavam barcas na Praça XV para tomar banhos privados longe da costa. A praia ainda era mais medicinal que social — lembra Claudia.

Os cronistas saíram em defesa do maiô. A autora de “Orla carioca” encontrou numa edição de 1926 do jornal “Beira Mar” uma ode à liberdade: “Já estamos enfarados dessa civilização moral falsa e postiça creada pelos nossos avós. É francamente irrisório que em pleno século vinte queiram moldar nossa norma de viver nos espelhos arcaicos e bolorentos de 1830”.

Não demorou, a sociedade reagiu: em 12 de janeiro de 1931, O GLOBO estampava na manchete de primeira página: “Foi iniciada pela polícia a campanha pró-pudor, nas praias de banho do Rio”. As fotos mostravam banhistas obrigados a vestir longos roupões e outros sendo levados à delegacia. Era proibido, entre outras coisas, andar pelas ruas de acesso à praia vestido em trajes de banho. Os limites seguiram nos anos seguintes, como conta a professora aposentada de história da UFRJ Miridan Falci, de 69 anos:

— Saía da praia com uma grande toalha enrolada no corpo e, volta e meia, era barrada. Nos ônibus, um aviso dizia: “é proibida a entrada de banhistas”. Mas vi toda a liberação: eu estava na Praia de Ipanema em 1971, no dia que Leila Diniz apareceu grávida de biquíni!

O topless estourou no verão da anistia, em 1980, mas jamais virou moda ampla, geral e irrestrita. Na Justiça, foi proibido e liberado várias vezes — a primeira vez em 1973, quando o Supremo Tribunal Federal negou uma liminar pedida por uma banhista, que queria expor o corpo com o aval dos juízes. Em 2000, a representante comercial Rosimeri Moura da Costa, de 34 anos, foi presa ao fazer topless no Recreio, acusada de ato obsceno. Hoje o carioca tem liberdade para sair da praia até para lugares chiques, mas prefere trajes comportados, mesmo na praia, segundo o casal de artistas plásticos Lúcio Tapajós, de 35 anos, e Renata Nonô, de 32. Ela dá sua versão para a volta no tempo:

— Até para comprar um coco no quiosque, muitas meninas vestem um short ou uma canga. E os biquínis parecem sungas. Mas isso não é uma onda conservadora, e sim o excesso de culto ao corpo. As pessoas ficam histéricas com uma celulite ou uma estria.

É outra ditadura: a do corpo perfeito. Mas, pelo menos no esporte, há quem flutue por cima das novas regras. Marianne Kerr, de 23 anos, surfa todo dia de biquíni no Leblon. Quando o tempo é curto, sai de casa pronta para entrar na água, sem medo de ser mal interpretada.

— Como moro perto, quando estou com pressa, antes da faculdade ou do trabalho, saio de biquíni para a praia. As cariocas não fazem muito isso, mas não tem erro — diz a surfista, que estuda psicologia na PUC.

Marianne não viveria bem na praia do século passado. Teria problema com o biquíni até os anos 50 e, nos 70, teria de deixar a prancha na areia durante boa parte do dia, já que o surfe também sofreu com as leis. Uma resolução de 1976 da Secretaria estadual de Segurança Pública estabeleceu que o esporte só poderia ser praticado depois da 14h em sete praias do estado. No resto da costa, era proibido. O frescobol continua na ilegalidade, mas o esporte com mais restrição na lei atualmente é o kitesurfe, permitido no Rio apenas entre dois quiosques da Praia da Barra.

texto publicado no site O Glogo Online em 25/12/2005

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