segunda-feira, 18 de junho de 2007

O corpo olímpico

Retirada do site Cultura e Pensamento, do Portal Terra

Não se pode entender a restauração dos jogos olímpicos, ocorrida há pouco mais de um século atrás, sem associá-los à questão do corpo. De que maneira o paganismo via o corpo e de que maneira o cristianismo o entendia: um como expressão da beleza, o outro como fonte do pecado. Eis a chave para entender-se o simbolismo dos jogos.


A nudez como natural

Em qualquer cidade da Hélade, por todo o lado em que o passante olhasse só veria a nudeza. Nos pedestais lá estavam eles, os deuses ou deusas, em estado da natureza. Quando não assim, como no caso das Vênus e das Dianas, um diáfano véu as cobria sem, porém, mascarar-lhes as exuberâncias. Se fosse um Marte ou um Hércules, um elmo ou um escudo só bastavam. Quanto aos atletas, nem isso. Estava tudo lá. Reproduziam-nos com toda a sua harmonia geométrica e na extensão plena da sua beleza e até as intricadas nervuras, a intensa rede de veias e de tendões que lhes davam vida podiam ser vistas mais de perto.

"...quando o espírito se move a querer marchar e caminhar, imediatamente toca na substância da alma que está disseminada em todo o corpo pelos membros e pelos órgãos: o que é fácil, visto que as duas substâncias são ligadas. A alma por seu turno toca no corpo e assim, pouco a pouco, toda a massa avança e caminha,..."

Lucrécio - Da Natureza, Livro IV, séc. I


O choque com a nudez

São Paulo quando visitou Atenas, ainda que por poucos dias - estima-se que ao redor dos anos 50-55 - horrorizou-se. Não só por aquela descarada exposição de paganismo em céu aberto, pela quantidade incrível de ídolos de mármore e de bronze, mas porque eles estavam assim como Deus os criara.

Homem da dura e áspera Palestina, onde senhores ou servos, velhos ou jovens, homens ou mulheres, açoitados por areias escaldantes, ocultavam-se atrás de turbantes e camisolões até os pés, o evangelista viu naquela exposição o reino de satã. Pouco depois, quando arengou ao público do areópago, pregou sem sucesso para que os atenienses se desfizessem das estátuas porque o verdadeiro Deus, do qual ele era um arauto, não podia ser copiado ou imitado por mãos profanas.


A visão pagã do corpo

E isso que, segundo se sabe, ele não freqüentou um estádio onde os atletas se reuniam, que não lhe mostraram nenhum ginásio. Como não sairia chocado! Naqueles locais, centenas de efebos e atletas mais experientes andavam para lá e para cá sem abrigo nenhum. Aliás gymna significa nu em grego.
O máximo que se permitia entre eles era portar um strigil, uma espécie de raspadeira que, durante o banho, usavam para remover a camada dos óleos com que besuntavam seus corpos (gesto que Lísipo imortalizou numa célebre estatua em homenagem a um vencedor dos jogos, o Apoxiomenos).

O grego, enfim, desconhecia o pudor físico. O corpo era para ele uma prova da criatividade dos deuses. Estava ali para ser exibido, adestrado, treinado, perfumado e reverenciado, pronto a arrancar olhares de admiração e inveja dos demais mortais.

Se as divindades não deram um belo físico a todos, não significava que os agraciados tivessem que por isso escondê-lo.


O corpo, arma de combate

Mas não se tratava apenas de narcisismo, de paixão desmedida por si mesmo. Os corpos não existiam apenas para mostrar-se, para gabar-se. Ao contrário, eles eram os instrumentos do agón, do combate. Tudo na natureza era luta, era obstáculo a ser transposto, era espaço ou terra a conquistar. A vida, diziam os deuses deles, não era uma graça e sim dom a ser mantido como toda energia possível.

Para tanto, os olímpicos lhes deram techné, a técnica, adequada para que exercitassem a arete, a virtude. As corridas, os saltos, os halteres, os discos, os dardos, os carros, eram as provas que as divindades exigiam deles para que se mostrassem dignos de terem sido premiados com uma vigorosa, saudável e bela compleição.

Era a oposição, o conflito, ensinara o mestre Heráclito, que trazia a concórdia. Quando um Fídias ou um Praxíteles desentranhavam do mármore um deus ou um atleta qualquer, era para que o povo procurasse imitar-lhe o porte, o físico e o censo de grandeza. Os deuses pagãos, afinal, não passavam de seres humanos melhorados, eram a excelência do que era possível alcançar.


O corpo como vergonha

Mas então o cristianismo venceu. Significativamente foi um homem das areias, um morador da beira do deserto, Santo Agostinho, o bispo de Hipona, na Tunísia de hoje, quem lançou o mais pesado manto da vergonha sobre a nudez do paganismo agonizante. Perante o deus cristão, o deus que estava em toda a parte, os homens e as mulheres deviam ocultar o corpo. Nem entre os casais, na intimidade, ele deveria ser inteiramente desvelado. O pecado rondava tudo.


Escondendo o corpo

Tirante o rosto, nada deveria ser mostrado em público. A pele exposta passou a ser uma afronta, até um braço nu, como mostrou Machado de Assis, podia parecer uma perdição. O corpo, prisão da alma, suspeito, era pois um vexame. Então, durante os mil e quinhentos anos seguintes - do decreto de Teodósio suprimindo em 393 com os jogos olímpicos até sua restauração pelo Barão de Coubertin em 1896 - , o Ocidente, vexado de si mesmo, carregado de culpas por ser feito de carne e de sexo, assaltado por pudores, encobriu seus membros e os seus músculos.


A vitória do corpo

Agora, com o declínio final dos sacerdotes que condenavam a vida na terra, vemos a sua redenção. Um neopaganismo ressurge e a carne intensa, ativa, ainda carregando as cicatrizes do estigma, volta a ser soberana. Quer mostrar-se. Cobra do mundo os séculos em que a confinaram, em que a infamaram. Vinga-se esvaziando os templos e as igrejas lotando as academias e os estádios. Agora quer ouro, quer prata, e até o modesto bronze lhe serve.

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