Publicado no site A Tarde Online
30/11/2007 (20:37)
por Ceci Alves, do A Tarde
Setenta crianças e adolescentes, vindos do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e da rede pública de Canudos, correm pelo tablado armado para as apresentações do espetáculo Os Sertões, da companhia de Teatro Oficina Uzyna Uzona, no Estádio Municipal, quando ouvem um “alto!”.
Eles param diante do ator Zé de Paiva, que pergunta, com firmeza: “Qual é a marca? Eu só quero ouvir isso: qual é a marca?” Cabisbaixos pela reprimenda, mas com a desenvoltura de profissionais de longas datas, as crianças e adolescentes com idade entre 7 e 16 anos, respondem, apontando para o lugar onde deveriam ter parado, durante o ensaio geral para a apresentação delas no capítulo Homem 1, da saga de Zé Celso Martinez Corrêa.
Zé de Paiva retoma o ensaio, e é impressionante ver como, em menos de uma semana de ensaios e oficinas, os meninos e meninas de Canudos tomam consciência do que é o palco e do que fazem ali. Essa oficina, que mexeu com as expectativas e sonhos de todos eles, faz parte do Movimento Bixigão, que trabalha formação teatral com as crianças do bairro do Bixiga, em São Paulo, sede do Teatro Oficina.
Durante a turnê de Os Sertões, as oficinas se tornaram itinerantes e, em cada parada da peça, formam crianças sempre relacionadas a movimentos sociais, ou à rede pública de ensino. “Nas cidades, a gente planta alguma coisa que não sabe direito qual vai ser o resultado, ou se vai ter resultado”, começa Zé de Paiva. “Só daqui a dez ou vinte anos a gente pode ver o que aconteceu, em uma semana não dá pra saber, é um processo”.
Principalmente em se tratando da oficina de Os Sertões, que, como ele avalia, “é uma superoficina de sete dias, com um texto de Euclides da Cunha, palavras rebuscadas, e ensinando as crianças a contracenar em um palco que não é do tipo italiano, é de 360°, mais céu e terra, com uma proposta diferente de teatro, que nunca tiveram... É um turbilhão!”, afirma.
Em Canudos, ela foi realizada em um tempo menor do que nos outros lugares, e, mesmo assim, os resultados foram mais do que satisfatórios. “A experiência do Bixigão é boa também por criar uma rede de comunicação entre nós e entre as crianças, conecta-os a outras expectativas e pessoas”, explica Zé de Paiva.
Emoção – A apresentação emocionou até os pais que relutaram em deixar os filhos participar da oficina, por ter “muito homem pelado e ser impróprio para menores de 14 anos”, como exclamou o pai de Lívia Campos Rabelo, 12 anos, que teve de ser convencido pela mãe da menina, Gizélia Gomes Campos, 45, de que aquilo poderia representar uma oportunidade para a filha.
Zelosa, a mãe acompanhou a menina e mais os outros 69 filhos de Canudos que participaram da oficina em todos os ensaios. De 138 jovens, sobraram 70, depois que os pais assistiram à peça no primeiro dia. “É que sou monitora do Peti e coordeno este trabalho com o Teatro Oficina, além de ser mãe da Lívia. Aqui sentada, me sinto representando todas as mães daqui”, orgulhou-se. “Quando o grupo chegou à cidade e ela soube das oficinas, disse: ‘Mainha vou participar’. Eu também não quis, mas ela insistiu tanto que acabou me convencendo. O pai não quis, mas eu convenci ele também”.
“Eu queria vir!” Quem sabe no futuro vou ser uma pessoa famosa?”, fala Lívia, que, apesar de amar o palco e estar sempre à frente de atividades artísticas com sua turma em Canudos, quer ser médica. “Me interesso em fazer teatro para abrir meus horizontes”, explica.
Os meninos ficaram poucos minutos em cena e, logo que acabaram a participação, foram retirados e levados para casa, para não assistir aos momentos impróprios que se sucederiam, calando a boca dos que reclamaram de que os organizadores estariam permitindo crianças assistirem à peça com classificação 14 anos. “As crianças presentes nos primeiros dias estavam acompanhadas de pais e responsáveis, como determina o Juizado de Menores”, informou a assessoria do espetáculo.
Sem roupa - E quanto à nudez do Teatro Oficina, assunto-mor da cidade desde que a trupe aportou em Canudos? Lidar com isso parece mais uma brincadeira, como estar no palco e dar um texto longo e rebuscado, de Euclides da Cunha, para uma platéia de cerca de 800 pessoas.
“Meu pai vai vir assistir!”, bate no peito Gustavo de Santana, 10. “Ele não teve essa, não, ficou feliz. Tá sendo maravilhoso”, arremata, provando que o povo é capaz de compreender do que trata a nudez exposta no palco do teatro orgiástico de Zé Celso. “Meus pais não se preocupam, é normal”, diz, com naturalidade, Josilvânia Pereira, 13: “É um pouco assustador no começo, mas todo mundo fica nu na vida. Mostrar isso como o teatro está fazendo é cultura, né?”.
“Ah! Nudismo é arte!”, dá de ombros a despachada Crislaine Coelho de Oliveira, 13. “Faz parte das matérias da escola. E fazer teatro é bom por isso: tira a vergonha e o que se sente por dentro. Mas arte é sempre assim, né?”, ri a sábia menina de Canudos.
Segundo dia – Foi longa a noite do capítulo Homem 1, de Os Sertões, durante a temporada canudense do espetáculo. Começou com meia hora de atraso e durou até as 23h30, cansando boa parte dos que debandaram durante o largo monólogo de Zé Celso, que arrematou as seis horas de peça. Exauridas, as pessoas abandonaram o local fazendo muito barulho, como se quisessem mostrar o seu desagrado.
Mas, mesmo com a debandada, o teatro continuou lotado, confirmando a expectativa da produção: apesar de ser um tour de force por vezes pouco palatável para o gosto comum, a “ópera sertaneja” apresentada “no terreiro eletrônico” está despertando o interesse do povo local. E isso é facilmente identificável durante o dia: não se fala em outra coisa em Canudos.
Os atores são abordados para dar autógrafos. A nudez e o erotismo no palco viraram assunto de discussão apaixonada em todas as rodas, com direito a defesa e acusação. A fila para o espetáculo é um desfile de moda: todos colocam a melhor roupa para ir ao teatro, o acontecimento do ano, não só por ser uma cidade pequena: trata-se de uma revolução nos costumes e no pensamento.
“Acho que isso de ficar falando da nudez, de recriminar, é cabeça fechada desse povo!”, diz dona Vanda de Pinho, aposentada, que não quis revelar a idade de jeito nenhum e foi com as amigas assistir à peça no segundo dia. “Quem estudou história geral, conhece, sabe como foi. Mas as críticas são normais para uma cidade pequena. Vim ontem e gostei muito. Vou vir todos os dias”, garante.
“Aqui é um lugar pequeno, as pessoas são pouco esclarecidas. Por isso estão achando um escândalo, uma falta de respeito”, afirma dona Valmira Canário, também aposentada. “É mente atrofiada!”, completa Maria das Graças, agente administrativa, 45.
“Tem um choque inicial sempre, mas tem a sedução”, pondera Zé de Paiva, que trabalha pelo Bixigão e é ator do Teatro Oficina e da peça. “Pretendemos ganhar o público e mostrar que, mais do que gente pelada, queremos dizer uma coisa importante e em que a gente acredita. Estamos fazendo um movimento para Canudos muito maior do que estar pelado ou não. Quando estamos nus, estamos, simplesmente, livres”.
Os Sertões Luta 1, neste sábado; Luta 2, neste domingo, sempre às 17h30 Estádio Municipal de Canudos R$ 1 (preço único)
domingo, 2 de dezembro de 2007
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