Retirado do site G1
Reportagem é assinada pelo polêmico jornalista Larry Rohter. Ele faz uma análise sociológica sobre a ocupação das praias cariocas.
Larry Rohter
Do New York Times
RIO DE JANEIRO - Os brasileiros gostam de dizer que a praia é o "espaço mais democrático" do seu país. Mas alguns corpos - e algumas praias - são mais iguais do que outros.
No imaginário brasileiro, a praia sempre foi considerada como a grande niveladora, "o local onde o general, o professor, o político, o milionário e o estudante pobre" são todos iguais, afirmou Roberto da Matta, antropólogo e articulista de jornal e importante cientista social. "Todos os corpos tornam-se igualmente humildes", diz ele, pela proximidade seminua de "um corpo com os outros, todos sem defesa ou disfarce".
Mas aqui na cidade cartão-postal do Brasil, onde a temporada de férias de verão está a pleno vapor, a hierarquia, em que classe e cor de pele exercem papéis, é nítida. As praias à beira do oceano nos bairros de elite da zona sul e os que as freqüentam estão acima no ranking em relação às da zona norte, de frente para a poluída Baía de Guanabara.
No Rio, 59 praias estão espalhadas por 170 quilômetros de areia. Até mesmo as praias mais elitistas da cidade, Ipanema e Copacabana, e suas extensões menos conhecidas, Leblon e Leme, são informalmente subdivididas em setores, demarcadas por uma dúzia de postos salva-vidas, a 800 metros de distância entre si. Cada posto, numerado de 1 a 12, possui uma cultura própria, atrai uma "tribo" diferente, sendo locais onde intrusos podem não ser bem-vindos.
O Brasil possui cerca de 8 mil quilômetros de litoral tropical, e, "por lei, a praia é sempre propriedade pública, jamais privada", declarou Patrícia Farias, autora do livro "Pegando uma Cor na Praia", um estudo sobre as relações raciais nas praias do Rio. "O discurso sempre se repete, 'convivemos democraticamente', mas a segunda parte não proferida diz 'de acordo com as minhas regras'".
No Rio, o Posto 9 está na moda há mais de 30 anos. É o favorito dos intelectuais de esquerda que ali agitam a bandeira do Partido dos Trabalhadores (governista), assim como de artistas e ex-hippies.
A região entre os Postos 11 e 12 no Leblon é o reduto das mães de classe alta com seus filhos pequenos. O fenômeno surgiu há cerca de 20 anos, quando um quiosque na calçada que vendia cocos e batidas instalou um fraldário e um pequeno playground na esperança de melhorar os negócios.
"Ipanema está sempre na vanguarda, mas o Leblon é mais família", contou João Fontes, da associação comunitária do Leblon, quando lhe pediram para comparar ambas as praias, separadas apenas por um estreito canal. "Preferimos ser discretos e modestos em vez de ficarmos nos gabando."
Na outra ponta de Ipanema, o Posto 7 é o ponto de encontro de surfistas locais. Mas também atrai gente de fora, muitos de pele escura, dos subúrbios da classe trabalhadora, e que moram a uma distância de três horas de ônibus, sobretudo nos finais de semana, quando famílias inteiras se instalam na areia.
A maior parte dos passageiros desses ônibus de subúrbio salta nos primeiros pontos de Ipanema, próximos ao Posto 7. Os intrusos são conhecidos pejorativamente como "farofeiros" porque costumam levar almoços completos para a praia, inclusive farofa. Também são alvos de gozações porque se sentam em esteiras de palha, em vez de toalhas de algodão coloridas, e usam bronzeador barato, em vez de bloqueadores solares mais caros.
"A maioria das pessoas te trata bem, mas alguns têm muito preconceito, até racismo", revelou Jefferson Luiz Santos Fonseca, 27, que às vezes vai à Ipanema nos finais de semana de verão com a esposa e os filhos.
Os brasileiros muitas vezes criticam entre si a própria sociedade em que a desobediência às leis e regras é generalizada, em pequena e grande escala. Os carros não raro passam faróis vermelhos e estacionam nas calçadas, e as florestas protegidas são derrubadas para exploração de madeira ou ocupadas por posseiros.
Em muitos aspectos, a praia não é diferente. Jogadores de frescobol à beira d'água, donos de cães brincam com seus animaizinhos e surfistas ameaçam atropelar os banhistas, todos violando as restrições a essas atividades, "e ninguém faz nada a respeito, nem a guarda municipal e, muito menos, o indefeso banhista", reclamou Joana Guimarães, mãe de dois filhos pequenos.
Isso não significa que não haja limites de comportamento. Apesar da fama do Brasil em relação à tolerância sexual, topless e nudez, cada vez mais comuns nas praias européias, aqui são censurados. Quando um grupo de jovens tentou fazer topless em Ipanema há alguns anos, as pessoas derramaram cerveja nas mulheres, xingaram e chamaram a polícia.
Mas o que realmente preocupa os banhistas são os "arrastões" em que grandes grupos de rapazes das favelas nos morros que dão vista para a praia atacam e roubam quem ali estiver. Isso começou no início da década de 1990, e, embora tenha diminuído nos últimos anos com a reação da polícia, continua sendo uma fonte de preocupação com um nítido componente racial.
"Se você está sentado ali com sua esposa e filhos, com seu relógio e dinheiro escondidos num lugar óbvio, e um grupo de adolescentes pardos com aquele cabelo tingido de loiro chega perto, você fica nervoso", declarou Antônio Bezerra Andrade, morador de Ipanema.
Alguns hotéis luxuosos de frente para a praia, nos últimos anos, equiparam os seguranças com binóculos, para observar o movimento a partir dos andares superiores e se comunicar por walkie-talkie com outros seguranças na praia. Eles também tentam afastar as prostitutas, conhecidas em algumas regiões do Brasil como "Cinderelas da areia".
Ainda assim, "o que me espanta é que numa sociedade que se denomina extremamente desorganizada, a praia é surpreendentemente organizada", afirmou da Matta. Mas a ordem, e o conforto a ela associado, não poderiam ser mantidos sem o que só pode ser descrito como uma classe serviçal.
Os banhistas são atendidos por vendedores em carrinhos que percorreram o longo trajeto dos subúrbios de classe baixa para vender bebidas, sorvete, óculos escuros, roupas e bronzeadores.
"Às vezes você vê esses grupos de moças de classe muito alta criticando o namorado ou falando sobre a vida sexual bem na sua frente", contou um vendedor, que pediu para não ser identificado, temendo ofender seus clientes mais assíduos. "É como se você nem estivesse ali, como se fosse invisível ou nem sequer fosse uma pessoa."
Muitas das tendências e movimentos culturais e sociais do Brasil nascem no Rio, e o palco é a praia. Quando, no início da década de 1970, por exemplo, a atriz Leila Diniz vestiu um biquíni minúsculo no Posto 9, solteira e em gravidez avançada, os tradicionalistas ficaram horrorizados. Mas as feministas lembram do episódio como um marco na luta por direitos iguais.
Alguns anos mais tarde, com a ditadura militar ainda no poder, Fernando Gabeira, hoje escritor e notável membro do Congresso representando o Partido Verde, retornou do exílio na Europa e sinalizou a ruptura de sua geração da esquerda stalinista vestindo uma resumida tanga de crochê na praia.
Mais recentemente, os gays marcaram território próximo ao Posto 9, que hoje tem hasteada a bandeira do arco-íris, símbolo do movimento.
"Por que, após anos em que os homossexuais se reuniam discretamente próximo ao Copacabana Palace Hotel, de repente você tem uma praia gay na rua Farme de Amoedo?", questiona Farias, autora do livro. "Porque os grupos usam a praia para obter visibilidade, para dizer 'Olha, eu também estou aqui'. Para isso, precisam de uma área na praia que possam dizer que lhes pertence."
sábado, 7 de julho de 2007
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